Newsletter Instante Perecível #21
Newsletter Instante Perecível
Olá pessoa querida, espero que essa news te encontre bem, dentro do possível.
Hoje a news está bem Clariceana. Eu vou compartilhar contigo um texto inspirado na crônica 'O ato gratuito' e uma carta-poesia para Clarice. Eu também te trago alguns afetos e três livros que eu li recentemente.
Vem comigo?
Eu me aventurei na ilustração digital para desenhar Clarice.
Sessão com título Clariceano para compartilhar com você um texto autoral.
De vez em quando eu preciso das palavras da Clarice Lispector. Quando baixa sobre mim um sentimento de urgência, só encontro lugar-de-ser junto às palavras dela. Por um instante, tudo o que eu sinto tem um lugar para existir. Hoje eu precisava de um ato gratuito, que Clarice traduz como o oposto da luta pela vida e na vida. O Ato gratuito é o contrário da nossa eterna corrida. Pelo que corremos? Pelo dinheiro, pelo trabalho, pelo amor, pelos prazeres, pela nossa vida diária. E quando cansamos de correr, de lutar, uma sede de liberdade nos acorda. Aí estava exatamente o que eu sentia, nas palavras da Clarice. Eu estava exausta de trabalhar, de ficar em casa, de buscar um sentido para os dias, de tentar encontrar alegrias possíveis. Estava exausta de sentir raiva, de estar indignada, de tentar ter esperanças diante do futuro incerto. Eu precisava com urgência de um ato gratuito. Um ato de liberdade, um ato que é, por si só. Um ato que não custasse o alto preço que custa viver. Me deixei guiar pela sede e fui para o jardim de casa. Deixei as palavras de Clarice me despentear, assim como o vento que passava pelo meu rosto. Eu fui para o jardim. "Só para olhar. Só para ver. Só para sentir. Só para viver." A vida no jardim era larga, com diversos tons de verde. Nada tinha avareza, tudo se dava completamente por inteiro. As árvores se erguiam e balançavam ao vento. As borboletas voavam, sem saber do seu curto tempo de vida. A Jabuticabeira em flor. Algumas bergamotas prestes a amadurecer. O mistério e o espanto me rodeavam. Uma mudinha de pitangueira se erguia, frágil. Um ninho de passarinhos, vazio. Os ciprestes mais altos que a casa, com seus troncos firmes e flexíveis. Ali dentro corria vida. A seiva inatingível que é a vida. Será que o que eu vejo no meu jardim é o mesmo que você veria? Acho que não. Cada um vê as coisas como cada um é. A Clarice viu a liberdade dos pássaros. Eu também vi. Eles voarem livremente, sem imaginar o vírus maldito que assola os humanos. Eu vi, a vida que morre no jardim. E a vida que nasce, nos lugares mais improváveis. Ato de liberdade. Ato gratuito. Obrigada, Clarice.
...
Você pode ouvir a crônica 'O ato gratuito' de Clarice Lispector no episódio do Literapia dessa semana.
Querida Clarice,
O que você diria se estivesse aqui hoje?
Como posso te falar do que estamos vivendo?
Uma pandemia global
Um vírus que nos mata
Nos deixa sem ar
Que coloca uma lente de aumento
em todas as nossas mazelas
Desigualdades, ignorância, intolerância
O mundo inteiro vivendo a mesma pandemia
E cada pessoa vivendo isso de uma forma diferente
Uns desempregados, famintos
Outros comprando pilhas
e mais pilhas
de papel higiênico
Você diria que perdoaria a Deus?
A esperança pousaria na sua casa?
Eu queria que você soubesse, Clarice
Ainda há felicidade clandestina
Na arte
Na literatura, poesia, música, dança, cinema...
Nos encontros (ainda que virtuais)
Me conta Clarice,
da onde você estiver
E se você fosse você
hoje?
Suas palavras de outrora
Ainda me guiam e inspiram
Mas quais seriam suas palavras hoje?
Tenho tanto a te perguntar...
Será que você ficaria sem ter o que dizer
como eu também fico nos dias de maior angústia?
Será que escreveria sobre não ter palavras?
Nesse mundo que parece sem contorno?
Você estaria se sentindo sozinha
E a solitude te ajudaria a encontrar
partes escondidas da tua alma?
Você se encontraria com seu próprio mistério?
Sabe, Clarice, aqui muitas vidas são perdidas por tantos vírus:
o Corona, o do racismo, o da intolerância, o da ignorância, o da necropolítica
Os tantos "e daí" te assustariam?
Como sequer posso começar a contar deste mundo para você?
Você pode nos ver?
Você choraria toda vez que lê as notícias?
Você escreveria sobre a Marielle?
O João Pedro?
O Floyd?
Ou perderia totalmente as palavras diante de tamanha desumanidade
Mas essa sou eu
Tentando vestir você com a roupagem da minha alma
Te fazendo perguntas
(tantas sem resposta)
das minhas inquietações
Mas quais seriam as tuas?
Me conta Clarice,
da onde você estiver
E se você fosse você
hoje?
Você estaria (Re)Aprendendo a viver?
Você teria mantido seu caderno de notas?
Sobre o que você escreveria?
Sobre um futuro improvável?
Sobre a revolta, o grito, a fome?
Você reviveria uma espera impaciente
pelo fim da quarentena?
Se entregaria à preguiça?
Você teria a valiosa companhia dos bichos?
Você teria um jardim para sentir os perfumes da terra?
Você escreveria sobre os nossos grandes artistas mortos?
Seria como a crônica "Desculpem, mas se morre"
versão pandêmica?
Você encontraria ainda estados de graça e alegrias mansas?
Iria contra uma maré?
Ou contra um rebanho?
Você ainda nos perguntaria: "Você é um número?"
Sinto muito em responder mas...
acredito que sim, Clarice, infelizmente
O que você estaria sentindo neste momento?
Sentiria saudades dos prazeres de uma vida normal?
Escreveria mais sobre os charlatões?
Teria mais dias de insônia feliz, ou infeliz?
Se sentiria útil?
Também não entenderia muito do que acontece?
Você teria prazer no trabalho e horas para gastar?
Você teria medo do desconhecido?
Ou estaria dialogando com ele?
Será que você ainda faria muitas conversas telefônicas?
Sentiria saudades? De quê?
Dos seus passeios de família? Dos banhos de mar?
Se poria a comer, comer?
Para preencher angústias ou para alimentar a alma?
Ainda escreveria sobre a liberdade?
A liberdade possível?
Você poderia ainda pertencer?
A você, aos outros?
Poderia ainda brincar de pensar, mesmo diante de tudo?
Isso te salvaria?
Você pensaria no que queria ter sido?
Estaria tendo muitos sonhos?
Encontraria um refúgio?
E, num instante fugaz
os momentos de lucidez perigosa
Sem aviso tudo mudou
Sim Clarice, é preciso parar!
Antes era perfeito?
Acredito que longe disso.
Como você descobriria o mundo hoje?
Ficaram os restos do carnaval...
Eu concordo com você Clarice:
que viva hoje
pois a vida é mesmo sobrenatural.
Sim Clarice, a posteridade nos julgará
Mas me conta,
da onde você estiver
E se você fosse você
hoje?
Você se sentiria ainda sem respostas?
Como eu também me sinto?
Sabe Clarice, Fernando Pessoa também me ajuda
E eu concordo: amar aos outros também é salvação individual
Há vida, há sim, há tanta vida!
Poema inspirado nos títulos dos capítulos do livro "Aprendendo a viver", de Clarice Lispector.
Escrito em 23/06/2020
Você pode escutar a minha leitura desta poesia aqui.
...
Por Bruna Berger Roisenberg
Sobre sete ondas verdes espumantes - Documentário sobre Caio F.
O poema Tulipa Azul - Ana Suy
Entrevista da Giovana Madalosso: “descubro quem fui pelo que estava lendo em determinada época. Descubro quem serei pelo que estou lendo agora”
Nunca fui a garota de papo-firme que o Roberto falou - Cristiane Lisbôa
Cada página do livro é um parágrafo poético. Não tem nada de papo-firme mesmo. É para deixar as palavras convocarem o que tu sentes, sem tentar compreender nada.
O ano do pensar mágico - Joan Didion
Blue Nights - Joan Didion
Eu conheci a Joan por este documentário sobre a vida dela. Fiquei encantada e fui atrás dos livros. que grata surpresa conhecer a escrita intuitiva da Joan. Você pode ler o que eu escrevi sobre estes livros aqui.
Novo Episódio:
O ato gratuito - Clarice Lispector
O podcast Literapia foi criado para compartilhar trechos de escritos que eu amo. Lá tem algumas meditações, poesias, palavras-abraço para todos os gostos. Você também pode me seguir no @literapia.podcast
Que bom te ter aqui comigo!
Sugestões, palavras de amor, críticas e tudo o mais, é só me falar. Vou adorar te escutar.
Se você perdeu as últimas news, pode ler elas aqui!
Te cuida e cuida dos teus amores!
Com amor,
Bruna Berger Roisenberg