Newsletter Instante Perecível #66
Newsletter Instante Perecível
abraçada em livros
atravesso os dias
colecionando instantes
um pôr-do-sol
me desperta
para o misterioso agora
enquanto escrevo
inspirada em sonhos
Vem comigo?
ilustração de Anna Cunha
Sessão com título Clariciano para compartilhar com você um texto autoral.
Essa noite eu sonhei que precisava atravessar uma zona de guerra. A noite toda, eu pegava meus livros, escondia eles no corpo, entrava em um caminhão tanque e ia cruzar um deserto em guerra. Rezava baixinho para não ser atingida por uma bomba. Chegava no outro lado com medo. O que tinha do outro lado? Já não sei. Só sei que os livros eram fundamentais para a travessia. Nos últimos dias os temas dos meus sonhos tem passado por ondas gigantes, desertos e guerras. Acordo, mas continuo sonhando. Pego um livro. Escolho Aline Valek, que já me fez morar nas profundezas e que já afundou cidades. Tudo muito significativo. Dessa vez Aline me fez desaparecer. A cada palavra, uma parte do meu corpo sumia, se misturava com o horizonte, virava palavra. Essa personagem precisou ir tão longe para desaparecer, mas a minha fantasia é que era no dia-a-dia atribulado que ela desaparecia. Na correria. No esquecimento do seu passado. Na solidão. Na impossibilidade de um futuro. Presa num eterno e angustiante agora, ela sumia. Mas agora já sou eu inventando outra história, que não a história da Aline. Aqui eu conto a história que se escreve em mim, e os fatos se dissolvem. Às vezes me imagino em uma ilha deserta, em uma cidade desconhecida, imersa em uma língua indecifrável. Às vezes me imagino perdendo a memória, e me apavora esse sumiço de quem sou, de quem fui, do que eu invento do que vivi. Às vezes me imagino sem margens, e o mundo me invade, me toma.
…
No final da tarde vou caminhando para o consultório. Consigo, enfim, comprar casquinhas de laranja cristalizadas para comer com chimarrão (e não há combinação melhor, eu garanto). Vejo o pôr-do-sol refletido na janela do prédio ao lado. A caverna de Platão moderna, pensei, mas acho que é besteira. Luto contra o impulso de fotografar mais um entardecer. Me pergunto para quê colecionar fotos do que se repete todo dia? Um apego pela memória? Um olhar que insiste em ver o que é belo sempre novo? Uma marca de que sim, cheguei ao fim do dia? Dentre tantas perguntas sem respostas decidi fotografar mesmo o céu de algodão doce. Sou uma acumuladora de instantes, admito. Volto pro livro que estou lendo. Descubro tarde demais que me apaixonei por Lygia Fagundes Telles. Não. Nunca é tarde. Ela me faz amar o abismo, o mistério, o gesto por trás da figura. Sempre tem algo acontecendo que não podemos ver. Ela também escrevia inspirada nos sonhos. Eu tenho sonhado com ondas, desertos e guerras. Não é nada fácil viver no Brasil de bolson*ro. Não aguento mais tanta barbárie naturalizada. Me agarro nos livros e me despeço de mais um dia. Resisto fechar os olhos, mas eu nunca parei de sonhar. Eu sonho…
"Parem o mundo que eu quero descer. Só um pouquinho, não vai atrapalhar ninguém. Deixa eu descer do mundo, que tá duro demais. Ou pelo menos descer do Brasil, que, se o mundo tá duro assim, este país então tá insuportável."
Caio Fernando Abreu
Foto de Henrique Roisenberg
• Depois de tudo, queime - Luciana Borges
Esse livro foi um flechazo, um enamoramento só. A Luciana conseguiu captar tão bem os encontros modernos em cada conto! Li em uma sentada, e fiquei querendo mais quando o livro acabou.
• Meus fantasmas dançam no silêncio - Nádia Camuça
"Meus fantasmas dançam no silêncio"
os meus também, Nádia
aprendi a dançar com eles
enquanto escrevo
e aqui te entrego meu coração
de quem admira quem escreve
como uma promessa
como um pacto
para ficar viva
e fazer viver
tua vontade
teus desejos
tua voz
quem te lê
tua poesia abraça o mistério
e grita, chora
"não abandonar o poema"
e não se abandonar pelo caminho
na poesia e na vida
não há margem segura
mas as palavras podem ser boias
salva-vidas
o tempo desmorona
estou submersa em sentimentos
e pouso eles nessa folha
para te encontrar
para me encontrar
dançando no silêncio
com meus fantasmas
A Patrícia Palumbo leu um poema que escrevi no meu podcast preferido, o Peixe Voador! Escute o episódio todo aqui.
Novo episódio:
A arte de perder, de Elizabeth Bishop
O podcast Literapia foi criado para compartilhar trechos de escritos que eu amo. Lá tem algumas meditações, poesias, palavras-abraço para todos os gostos. Você também pode me seguir no @literapia.podcast
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Te cuida e cuida dos teus amores!
Com amor,
Bruna Berger Roisenberg