Me visto de nuvem para começar o dia. Às 7 da manhã já estou atendendo. Pego o ônibus e vou para universidade enquanto falo com a minha família por chamada de vídeo. O ônibus virou meu confessionário. Choro, conto meus casos, consolo choros em outros continentes. Ali ninguém entende minha língua. Estou segura. Passo pelos bairros já conhecidos, penso que eu tenho que vir um dia tomar café nessa livraria. Estou sempre me adiando, por mais que esteja sempre atenta a esse meu movimento de me afundar no conforto da rotina. O ônibus entra na rua mais horrorosa dessa cidade. A minha cavalhada (piada interna - quem conhece Porto Alegre entenderá). Uma loja de flores falsas que é o cenário perfeito de um filme de terror. Uma loja só de sapatos de salto exageradamente altos. 30 lojas de vestidos de noiva. Uma loja de troféus. Uma livraria budista. O último Pizza Hut da Austrália. Um McDonald 's que anuncia que a minha parada é a próxima. Chego no Brain and Mind Centre (nome chique). Me acomodo na minha mesa, no meu computador de 3 telas (tô ficando mal acostumada com essas mordomias). Ainda me custa acreditar que estou aqui. Que consegui. Trabalho, escrevo, leio artigos, faço reuniões, almoço o sanduíche que levei pro almoço, tomo 3 xícaras de chá, e já estou pronta para voltar para casa. Casa, ainda é estranho pensar, mas já é possível sentir. Vou andando pela mesma rua de sempre para pegar o ônibus, mas me deparo com uma novidade do outro lado da rua. Uma casinha bem australiana, uma prateleira pregada no muro, toucas de tricô disponíveis para quem quisesse pegar. Não sei quem mora nessa casa, mas logo imagino toda uma história na minha cabeça. Uma senhora aposentada. Um gato aos seus pés. Tardes de tricô. A solidão no peito. A vontade de compartilhar sua vida com estranhos que passam pela rua. A alegria ao ver a estante vazia no fim do dia. Tudo isso é pura ficção. Meu irmão disse que eu vou pegar piolho. Arrisco, pelo bem da poesia. Salve a serendipidade que abençoa os corações abertos à surpresa e ao acaso. Chego em casa, caminho até a bay. Eu preciso ver a água todos os dias. Volto pelo meu parque. Que já é meu, mesmo não sendo de posse minha. Nem 18 horas e já é noite. Um céu pegando fogo. Essa cidade sabe das cores como nenhuma outra. Escrevo, leio Rita Lee, Tamara Klink, e espero o sono vir me buscar e me levar pro mundo dos sonhos.
Notícias do lado de cá:
Pela primeira vez ganhei alguma coisa em algum sorteio. Os pobres humilhados dessa cidade finalmente começam a ser exaltados. 50 pilas no Kmart é coisa para caramba. Passei o meu segundo Anzac day aqui, o primeiro Anzac day que vivi de verdade, como os australianos: com direito a Anzac biscuits e two-up no pub. Demorei a entender o que era o Anzac day, e porque ele é tão valorizado por aqui. Tem a ver com a primeira guerra e um monte de australianos e neozelandeses morrendo na Turquia. Ainda não entendo direito. Na rinha de feriados do dia 25 de abril a Itália ganha disparado. Bem melhor comemorar a derrota dos nazifascistas. Eu sei que posso soar repetitiva, mas os dias de outono por aqui são lindos demais!!! Eu tive um evento no Town Hall, onde a prefeita de Sydney deu uma festa para receber os estudantes internacionais. Agora me diz: como não amar esse país? Estou vivendo a etapa "lua de mel" na mudança e no PhD: vivo encantada. E eu quero que essa etapa se prolongue o máximo possível, afinal, como escreveu o amado Valter Hugo Mãe, "é urgente viver encantado". A saudade do Brasil dói mais em alguns dias. Ela dá notícias de viver nesse eterno entre. Algo sempre me falta. No mais, já estou com um pezinho no Brasil, que o tempo ruge e logo logo tô indo para minha primeira visita (que estranhamento imenso falar/escrever visitar o Brasil).
Eu tenho escrito todos os dias para o desafio de escrita da Maíra Ferreira:
Vai lá no insta ver o que tenho criado:
Tudo pode ser roubado - Giovana Madalosso
Tudo pode ser roubado. Um paletó chique, uma edição única d’O Guarani, uma amizade verdadeira, a possibilidade de se apaixonar. Eu amei esse livro (que devorei em poucos dias).
Aí vão alguns trechos que eu sublinhei:
“Essa era a São Paulo de que eu gostava, a São Paulo depois do expediente, quando as pessoas afrouxavam a gravata e deixavam entrever, como flores sinistras rebentando pelo corpo, as marcas de viver numa cidade tão obcecada com a produtividade. Porque, no final, a verdade sobre uma cidade é esta: o que sobra de cada um depois que as luzes dos escritórios se apagam.”
“O que a fez se reaproximar de mim eram coisas miúdas que cintilavam dentro dela, loucas para ser admiradas, divididas. Vistas sob uma nova luz.”
“Um medo pode ser infundado, mas a dor gerada por ele é real. A dor é sempre real.”
“Outra ironia da situação, porque, logo quando você deve ser mais fiel a você mesma, é quando você se desfigura. Mas é a vida, só mais um entre tantos desencontros.”
Que alegria te ter por aqui!
Que delicia descobrir seus escritos!
Tenho gostado muito de acompanhar as suas percepções do dia a dia da vida Bruna.