Uma das coisas que eu mais gosto de fazer quando a poesia parece me escapar pelos dedos é poema de blackout. Aprendi essa técnica com Austin Kleon no livro Roube como um artista. A técnica funciona assim: escolho um texto, qualquer um serve. Pode ser um artigo de jornal, uma página de um livro, um panfleto… (Dica quente: as páginas escritas por Clarice Lispector sempre rendem os melhores poemas!) Depois eu deixo que as palavras saltem para fora do texto e me capturem, formando uma nova combinação. É como brincar de caça-palavras, inventando um poema com as palavras que antes serviram a outro propósito. Manuseio a linguagem e algo se escreve por mim, para além de mim. Se animou a experimentar? Me envia a tua criação!
Compartilho contigo o meu mais recente poema de blackout, feito a partir de uma crônica de jornal:
Agora?
a linha se divide
fixa os olhos
sente
a espuma do mar
a memória
caminhou tanto
foram andanças
palavras
a esmo
palavras
ao vento
no final
água
suor
mar
Rua da padaria - Bruna Beber
Na rua da padaria cabe um romance de 12 linhas, cabem mil pensamentos entre o tic e o tac do relógio, cabe a costura de novas histórias sendo anotadas em segredo em um caderninho, cabe a felicidade (que é mais desconcertante que a dor), cabem você, o mar e a brisa.
“11. o mutismo
a corda da distância
tem tamanho infinito
inventemos pois o pé
e o lenço de enxugar lágrimas antigas
vou me pintar
disposto
na costura
de novas histórias
mas comovido
em segredo
vivo de anotar
no caderninho.”
Bruna Beber
Lili - Noemi Jaffe
eu já conhecia a Lili
fomos apresentadas por Noemi
com a pergunta-poema-livro
o que os cegos estão sonhando?
eu não conhecia Lili
que através da vida e da morte
me apresenta Noemi
que me apresenta a mim mesma
uma pessoa pode ser só o calor das mãos
e isso é suficiente
para que nela se reconheça
seus papéis
mãe, filha
mãe da filha
filha mãe da mãe
"Mãe é diferente de pessoa (...) mãe é loucura"
escreve Noemi
para descobrir o que sente
quando só escrever ajuda
a "celebrar a morte do que se é, outra vida, viver tudo o que for possível."
quem se vai, deixa uma parte sua
e leva uma parte nossa
e no fim
"As coisas revestidas de morte
são também as coisas revestidas de vida"
nesse duplo inseparável
vida-morte-vida-morte
"O que resta de alguém, pelo olhar de quem fica, é mesmo isso, o amor. E o amor é o quê? Um bichinho que rói, rói, rói. Uma harmonia entre a dilatação da pupila e os lábios se projetando para os lados. Um esquecimento súbito seguido de um "ah, lembrei, sim". Um abrir de geladeira para pegar as ameixas geladas que seu companheiro guardou para você. A lembrança da mãe dizendo ao telefone:
"Nô, quando você vem aqui?”.
Quando chegar a hora da minha morte, quero que seja silenciosa como a dela. Mas principalmente que reste de mim o que dela resta em mim agora esta película de ar." Noemi Jaffe