instante perecível #74
arrumar os armários, uma insônia, uma lanterna para iluminar atrocidades
aqui escrevo para atravessar a minha desordem escrevo sobre a realidade do meu mundo por mais dolorosa que seja pois o papel aceita tudo e as palavras são botes salva-vidas
travelling
“Tarde da noite recoloco a casa toda em seu lugar.
Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e um regador,
Elizabeth reconfirmava, “Perder
é mais fácil que se pensa”.
Rasgo os papéis todos que sobraram.”
Ana Cristina Cesar
A bagunça dos armários refletia como eu me sentia. Um caos, muito lixo acumulado, a chave de casa perdida, roupas desbotadas, roupas que não eram minhas. Uma prateleira inteira de livros. Sempre os livros a ocupar espaço lá dentro, aqui dentro. Desenterro memórias guardadas em forma de objetos. Tento recuperar quem eu fui. Me despeço de quem eu sou, uma velha roupa colorida que não me serve mais. Estava adiando olhar para a bagunça, mesmo que ela gritasse todos os dias. Resolvo atravessar a minha desordem, encaro a verdade do meu abandono. Paro de fingir que eu não vejo o que eu enxergo muito bem (e que me faz mal). Tiro tudo para fora e aos poucos vou selecionando o que fica e o que vai. Principalmente o que vai embora, o que não me serve mais. Um movimento constante de escolhas que ficou interrompido em um momento em que eu só jogava tudo para dentro. Até não caber mais. No final estou cansada, mas me sinto mais leve. Encontro um fio de força de volta pra vida. Agora nada mais se esconde no meio do caos. Estou atenta a mim mesma e me consulto a cada instante. Descubro meus demônios enterrados na bagunça do armário, e eu agora os vejo e os conheço.
acordo com uma insônia na boca do estômago acordo de uma noite sem sonhos dando graças pois não aguentava mais ver nos sonhos o espelho do medo constante que é viver nesse país
Ontem eu estava sentada com a minha família em um café no Floripa Shopping. Há algumas mesas de distância duas senhoras vestidas com camisetas vermelhas do PT e óculos de estrela (que eu queria muito ter, diga-se de passagem), também estavam sentadas tomando café e conversando. Do mais absoluto nada eu escuto gritos e uma movimentação estranha, e quando consigo dar um sentido para o que estava acontecendo não queria acreditar no que os meus olhos viam. Um senhor careca, musculoso, vestindo uma camiseta preta com a frase 'O STF é uma farsa' agredia verbalmente as duas senhoras. Com o dedo em riste, bradava violentamente contra elas. As duas reagiram sorrindo e fazendo o símbolo do coração com as mãos (maravilhosas). O homem não desistiu da ofensiva, pelo contrário, parecia mais enraivecido com a reação delas. Ele se afastou do café com muito custo, ainda esbravejando. Todo mundo olhava a cena com um ar de incredulidade. As mulheres que trabalhavam no café vieram ao auxílio das duas senhoras. O segurança do shopping não se encontrava em lugar nenhum. Eu sentia um tremor de medo e raiva muito grande dentro de mim, que transbordou em lágrimas. Meu pai hipotetizou o pior: “imagina se ele está armado” (o que era bem possível). Me choca a realidade do que aconteceu e a violência me atravessa. O agressor é o retrato do bolsonarismo. Ele representa tudo o que eu repudio, tudo o que eu mais detesto, tudo o que eu mais temo. Imagino (muito pessimista ou realista) que cenas como essa ainda vão se repetir diversas vezes esse ano. Temo pela minha vida e pela vida das pessoas que mais amo (que são alvos de pessoas como esse homem). Tenho medo de exercer a minha liberdade de direito e sair de casa com o meu boné do MST (a que ponto chegamos!). Conto os dias até as eleições, até o final do ano. Sei que a herança que esse governo nos deixará será difícil de ser transformada. Temos um ano de muita luta e resistência pela frente. Escrevo aqui meio sem jeito, ainda tomada pela violência do ocorrido. Tento encontrar palavras para descrever o que senti e o que presenciar esse ato de agressão me causou. Escrevo segurando na mão de Erico Verissimo:
"(...) o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, trazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto."
Erico Verissimo, Solo de Clarineta, Vol. 1
Conversas entre amigos - Sally Rooney
Eu amei essa leitura (gostei bem mais do que Pessoas Normais). Mergulhei na relação e nos amores de Frances, Bobbi, Nick e Melissa. Fiquei capturada por uma sensação contante de estranhamento, de uma forma boa. A estranheza é bela nas palavras de Sally Rooney.
“Pela janela, olhei para a estação. Tinha a impressão de que algo na minha vida havia chegado ao fim, talvez a imagem de mim mesma como uma pessoa inteira ou normal. Percebi que minha vida seria cheia de sofrimento físico mundano e de que não havia nada de especial nisso. Sofrer não me tornaria especial, e fingir não sofrer não me tornaria especial. Falar disso, ou até escrever sobre isso, não transformaria o sofrimento em algo útil. Nada transformaria. Agradeci à minha mãe pela carona até a estação e desci do carro.”
Que alegria te ter por aqui!
Chorei junto lendo o que aconteceu no shopping. Compartilhamos do mesmo medo, mas seguiremos fazendo corações com a mão!
(Eu mandei um comentário aqui e não entrou, ué).
ah tá, agora foi hehe