Escrever sobre os livros que leio é uma das minhas coisas preferidas da vida. É que os livros também me leem, e escrevendo, eu extrapolo as páginas lidas e reescrevo a história do livro (e a minha história). Cada um lê um livro diferente, ainda que seja a leitura do mesmo livro. Cada um lê quem se é. E a leitura tem mesmo o poder de criar mudos no mundo. Um mundo eternamente desdobrável. Eu leio livros para ler o mundo. Hoje eu te escrevo (me escrevendo) sobre dois livros maravilhosos que li esses tempos. 'Risque esta palavra' da Ana Martins Marques (que é uma das poetisas que eu mais admiro), e 'As despedidas' da Carina Bacelar (escritora que conheci recentemente, mas que já me conquistou e encantou com suas histórias). Vem comigo?
“Quase nunca esqueço os livros que falam de mim.”
Marcela Dantés - João Maria Matilde
“ler é viver
muitas vidas
além da sua“
Aline Bei - Pequena coreografia do adeus
As despedidas - Carina Bacelar
Quantas despedidas vivemos todos os dias? Quantas despedidas vivemos sem saber que eram despedidas? Nos despedimos da infância em algum dia incerto, adentramos no inferno. Nos despedimos de amores não vividos (ou vividos somente por nós mesmas). Nos despedimos de cidades, de casas, de lugares ínfimos que nunca voltaremos a visitar. Nos despedimos do controle. Nos despedimos de ser quem somos, só para nos encontrarmos com versões estranhas e mais verdadeiras de nós. Nos despedimos de velhos costumes. Nos despedimos tirando fotos de um momento que nunca mais vai se repetir. Nos despedimos do nosso corpo a cada segundo, apesar de ser a única presença constante em nossa vida. Nos despedimos de sonhos não vividos, que não fazem mais sentido, eram sonhos de quem fomos, de quem já nos despedimos. Nos despedimos de lembranças que insistem em ignorar as despedidas. Nos despedimos de palavras, que escrevemos para não sufocar. Nos despedimos. Um movimento eterno de deixar algo nosso e levar algo do outro. Nós somos feitos de despedidas.
"(...) para toda despedida existe um caminho de volta, a leitura devolve o ar aos pulmões do que já foi escrito, e assim nem mesmo a morte consegue dar fim a uma vida. De forma que, no sexto dia, ao escrever a última linha da última página, abrirei um buraco no silêncio, nos lábios, no apartamento, na janela e no tempo, com um suspiro em volume de grito que vai voltar das paredes em eco: eu estou viva."
Risque esta palavra - Ana Martins Marques
Um dos meus livros de poesia preferidos!
Abaixo eu compartilho contigo as páginas do diário que escrevi enquanto eu lia esse livro:
a poesia da Ana faz abrir horizontes nos olhos cansados da mesmice do cotidiano faz do peito um caleidoscópio uma brisa que despenteia as ideias inaugura mundos no mundo e faz dobras no tempo ... risque esta palavra, diz a autora e eu não tive a audácia de fazer um risquinho sequer no livro todo logo eu que leio com os olhos e com as mãos sublinhando frases, circulando palavras, escrevendo nas margens desobedeço a poeta e crio uma nova forma de ler leio mal escrevo sobre o que não li extrapolo o texto assim eu também faço poesia ... eu risquei o livro não ignorei o impulso ao gesto de escrever gesto na página 36 ... "encerramos afinal nossa aventura" assim termino o livro ainda temerosa em riscar palavras no papel sagrado afinal, no poema eu teimo em fazer o que me mandam aqui eu sou risco e eu risco um fósforo enquanto a breve chama das tuas palavras me queimam pelo avesso eu sinto que eu sou mais eu quando não penso e sem pensar eu te falei tanto de mim ao copiar trechos dos poemas nessas páginas riscando as palavras que me fizeram corpo enquanto eu te lia revirava o mundo do avesso até encontrar a poesia
Que alegria te ter por aqui!
“Nos despedimos de ser quem somos, só para nos encontrarmos com versões estranhas e mais verdadeiras de nós.” amei!!
muito tenho pensado sobre essa constante transformação que nos faz vivos, daquelas semanas que nos significam tanto que parecem anos... o melhor disso tudo é poder voltar à vida-que-passou e um livro-já-lido e poder ter a beleza de um primeiro encontro, novamente... estou no momento dos primeiros encontros, por isso seu texto me tocou. obg :)