É tarde da noite e eu estou lendo para conseguir dormir. A insônia insiste em aparecer, a sensação já conhecida de que em breve tudo vai mudar. Sonho com fazer as malas (e nada cabe). Sonho com invasões terroristas. O livro é um antídoto para as angústias.
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Leio o livro que você me deixou, tentando te encontrar na página marcada. Você parou de ler lá pela metade do livro, eu te ultrapasso, mas não consigo tirar o teu marcador do meio das páginas. Tua presença aqui, na página 99, como uma promessa de retorno. Vai que na volta tu queira acabar de ler? As despedidas, tantas coisas interrompidas.
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Vivo muito vivo, escritores amados, contos. Eu nunca gostei muito de contos. Todas as histórias ficam pela metade, e as entrelinhas dizem mais que as linhas. No conto, o leitor precisa trabalhar mais: quase nada está dado no que está escrito. É preciso descobrir a história oculta, a história dentro da história. E foi só quando eu entendi a falta que há nos contos é que eu comecei a amá-los. Nesse livro eu paro na história escrita por Juliana Leite, autora do maravilhoso livro Humanos exemplares.
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O conto me leva a pensar na teoria da vida x a vida em si. Quantas vezes ficamos fiéis à teoria da vida, ignorando a vida em si. Todos os deverias, todas as regras explícitas e implícitas sobre como a vida deveria ser, quais escolhas "certas" a se tomar, enquanto a vida em si corre paralelamente. A vida em si não tem muito sentido. Ela não obedece regras nem planos. Ela é guiada pelos desejos e pelas faltas. Ela é repleta de surpresas e coincidências. A vida em si é julgada, é reprimida, é deixada de lado. Pois na vida em si, a vida acontece, e isso pode ser amedrontador. Então usamos a teoria da vida (ou a suposta teoria da vida, se é que a vida – tão ampla e tão vasta – está sujeita a alguma teoria) para tentar dar conta da vida. E tudo bem! O problema é quando vamos usando a teoria da vida para tudo. A vida vai ficando apertada em regras rígidas, o desejo vai morrendo junto com a certeza de que temos força e coragem para encarar de frente a vida em si. E temos! A vida em si pode ser bela nas suas dores. A vida em si pode ser surpreendentemente boa. Mas não temos controle da vida em si. E isso é difícil de aceitar.
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A falta que tu me faz já estava prevista na teoria da vida. Mas na vida em si a falta dói e é linda. Tu me falta, e eu te encontro, pois pra realizar meus sonhos também terei que deixar um rastro de falta nas pessoas que amo. E isso é "errado" na teoria da vida. Na vida em si isso é mais complexo do que certo e errado. É maravilhoso e tristíssimo, ao mesmo tempo. O que eu desejo, pra mim e pra ti, é que possamos viver mais a vida em si. Que possamos ser menos leais à teoria da vida, e usar ela cada vez menos como forma de proteção. Desejo que mergulhemos fundo na vida em si, com todas as dores e alegrias, frustrações e realizações que ela pode nos dar.
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Na teoria da vida talvez eu nem devesse publicar esse texto. Ele é muito pessoal, filosófico, confuso, etc etc. Mas na vida em si, de madrugada, com um livro no colo e a saudade no peito, eu quero escrever exatamente isso. E te enviar.
Humanos exemplares - Juliana Leite
Um dos melhores livros que eu li ano passado! Um livro sobre a velhice, a morte e a vida.
"Nosso corpo tinha vontade de esquecer o terrível, é claro que tinha, e vontade de viver livremente, isso ainda mais, se lançando em parques de diversão e na feitura de crianças, nos festivais de música, na praia, nas férias, nas eleições, no ano-novo, nas coisas novas e simples. E portanto já estava evidente que a memória não precisaria sobreviver apenas aos mortos, mas também ao esquecimento dos vivos, dos entretidos. Era preciso recordar a todo momento do que a tirania era capaz, pôr as coisas por escrito e entregar esses escritos como herança para as gerações futuras, mesmo que depois disso comprássemos tíquetes para a roda-gigante e nos fartássemos de pipoca."
Que alegria te ter por aqui!