Eu amo todos os romances da Elena Ferrante, especialmente a tetralogia Napolitana, que me marcou profundamente. Eu também gosto muito do livro Frantumaglia, em que a escritora fala mais sobre seu processo de escrita e suas inspirações. Acabou de ser publicado no Brasil o seu último livro, As margens e o ditado. O livro reúne 4 ensaios sobre a escrita e a leitura, e hoje eu te conto mais sobre o que a Ferrante escreveu sobre seu próprio processo de escrita neste livro lindo.
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“Tudo começa com um lápis e um papel.”
O que eu mais gosto da escrita é que para escrever basta apenas querer escrever. Um lápis e um papel, é simples assim, já temos tudo o que precisamos. A escrita não exige materiais caros e específicos. Ela não necessita de nenhum curso, de nenhuma técnica. Basta saber ler e escrever. E desejar escrever. Clarice Lispector escreveu diversas vezes trechos dos seus livros em guardanapos, rascunhos e até mesmo cheques bancários. Um lápis e um papel. E assim começa a escrita.
“A escrita estava sempre fadada a uma incômoda aproximação.”
Escrever é dar um contorno de palavras ao real. Esse real que nunca se alcança, só se vive. Nenhuma palavra traduz a vida na sua exata versão. Eu posso tentar descrever o que vivi, mas nunca vou poder representar completamente o vivido nas palavras escritas. Algo sempre falta. Escrever é viver com a falta, é saber que algo sempre falta, é abraçar a falta que há no mundo. Escrever é uma tentativa constante, sem nunca conseguir. Escrever é tentar capturar os instantes, que são sempre perecíveis. Escrever é forjar uma memória (que é sempre mutante, ficcionista). Escrever é teimosia.
“Será mesmo necessário um milagre para que uma mulher com coisas a contar dissolva as margens entre as quais parece estar fechada por natureza e se mostre para o mundo com a sua escrita?”
Não precisamos de um milagre. Precisamos colocar a nossa escrita no mundo. Precisamos acreditar que o que temos para contar é importante. Precisamos ler mulheres vivas, elas abrem caminhos. Precisamos de coragem para abraçar os medos e ainda assim escrever. Precisamos colocar nossa voz no mundo. Acredito de verdade que podemos dissolver as margens, e que não precisamos de um milagre. Precisamos escrever nossa verdade e compartilhá-la. Tua voz é importante. Tua escrita é importante. Acredita em ti! (E para isso não é preciso nenhum milagre. Já é sagrado).
“Quando escrevo nem eu mesma sei quem sou.”
“O ato de escrever é um puro tentar a sorte.”
É ter coragem de escrever o que não se sabe que vai escrever. Nunca sabemos de antemão, só sabemos escrevendo. Tem algo em nós que se escreve através da escrita. Algo desconhecido. Algo há muito conhecido, mas esquecido. Escrever é descobrir constantemente quem se é. Escrever é sempre se desconhecer.
“O eu que escreve a sério são vinte pessoas, uma pluralidade hipersensível toda concentrada na mão equipada de caneta.”
Escrever para conhecer as vozes que me habitam. Escrever para ser outra além de mim. Escrever para ser cada vez mais eu mesma. Tão desconhecida de mim, tão familiar.
“Quem escreve não tem nome, é pura sensibilidade.”
Elena Ferrante distingue duas escritas que compõem os seus livros. A primeira é a aquiescente, que fica dentro das margens. A segunda é a convulsa, desmarginada, que se derrama na página e cria cenas tomadas de verdade e sensibilidade, a escrita que é bela por ter a força desesperada do feio. A escrita que ela ilustra com esse trecho:
Uma pequena oração:
“Começar a escrever com a verdade de que sou capaz, desequilibrando e deformando, abrindo espaço para mim mesma com todo o corpo.”
Quando escrevemos, escrevemos com o corpo todo. Os sentidos que capturam o mundo. Olhos de palavras. A mão que escreve. Os arrepios que percorrem o corpo. O nó na garganta que se quer dizer em palavra escrita. Os cabelos, ora presos, ora soltos. Os ouvidos, que escutam as músicas, os ruídos das ruas. Os cheiros, memória viva. As pernas que se agitam. O coração acelerado, coração de poesia.
Uma regra:
“Quem escreve tem o dever de colocar em palavras os empurrões que dá e que recebe dos outros.”
Diga as coisas como elas são. Está lá fora tudo o que nos impulsiona a escrever. As narrativas estão por toda a parte. Nessa roupa, nesse quarto, em todos os livros na minha mesa. Tudo tem história. Tudo revela uma história. A escrita tem olhos atentos para o mundo. A escrita é um espelho.
“Tentar dizer a coisa como ela é pode se tornar paralisante [...] tentarei, portanto, dizê-la como posso, e, quem sabe, talvez eu tenha sorte e consiga dizê-la como é”.
Há mil formas de dizer a mesma coisa. Apenas escreve. Escreve sem corrigir nada. Escreve livremente, como vem na hora que se escreve. Depois se edita. Escreve como você pode escrever. Mesmo que não saia como o imaginado (nunca vai sair). Apenas escreve.
“Fabricamos ficções não para que o falso pareça verdadeiro, mas para conseguirmos dizer o verdadeiro mais indizível, com absoluta fidelidade, por meio das ficções.”
Escrever ficções para encontrar a vida viva autêntica: “a pena do amor, a pena de viver, a angústia da morte, a necessidade de alinhar o mundo torto”.
“Escrever é acomodar-se em tudo o que já foi escrito.”
Nenhuma palavra é realmente nossa. O nosso EU escritor é muito mais o nosso EU leitor. Na escrita tudo tem história, e escrever é reescrever. Eu honro as minhas referências, que me emprestam suas vozes para que eu encontre a minha. Quando leio Clarice, sinto que volto ao corpo. Quando leio Ferrante, leio uma parte de tudo o que eu sinto, mas que até então não tinha palavras. Minha poesia tem Ana Martins Marques, tem Ana Estaregui, tem Wislawa. Meu olhar pro mundo tem Caio F. etc etc
Sobre Lila e Lenù:
“O pecado original das duas amigas era ter acreditado que podiam fazer tudo sozinhas, a primeira quando criança e a segunda quando adulta.”
Para finalizar:
“O maior desejo que qualquer um que escreve e narra: a ânsia de se desprender de si mesmo; o sonho de se tornar o outro sem obstáculos; um ser você ao mesmo tempo que você sou eu; um fluir da língua e da escrita sem mais sentir a alteridade como um estorvo.”
* Todos os trechos entre aspas são do livro “As margens e o ditado” de Elena Ferrante.
2 romances água com açúcar para ler e desopilar:
Minha amiga maravilhosa, a Lia, está lançando um grupo terapêutico para imigrantes. Inscrições aqui.
Que alegria te ter por aqui!
Adorei mesmo conhecer um pouco desse processo criativo dela! E já me interessei pelas “As margens e o ditado”. Valeu pela dica!
Em tempo: recentemente descobri uma série genial "A Viagem dos Livros". O episódio da Itália, aborda um pouco da vida/produção da Elena Ferrante em Nápoles. Vale a pena!