"Em que língua acorda o bilíngue?"
Sylvia Molloy
Tem dias que eu acordo em português. Nesses dias o meu cérebro está todo no modo português. Ele se recusa a falar em inglês, não aguenta mais ouvir o inglês, e só quer um pouco de português para se acalmar. Nesses dias respondo "com licença" na rua ao invés de "excuse me". Solto palavras aleatórias em português no meio das conversas. Falo "né?" no fim de uma frase em inglês. As palavras me fogem. Tudo, tudo que eu queria era só um pouquinho de português. Outros dias o meu cérebro acorda no modo turbo em inglês. Solto expressões em inglês no meio de conversas em português. Meu sotaque fica menos carregado, meu vocabulário fica mais rico. Até sonho em inglês. Acho que é assim mesmo viver entre línguas, entre países, entre culturas. Uma mistureba danada. Quero só ver em qual língua eu vou acordar amanhã.
"Para se sentir confortável e mesmo loquaz em outro idioma, é necessária a imersão total no estrangeiro e no esquecimento: que não haja rastros do home que ficou para trás. Mas quando é que trazemos conosco esse home? Quando é que essa estrangeirice vira parte de nós mesmos?"
Sylvia Molloy
Por hora sou inteira feita de rastros do que ficou para trás. A casa ainda é a casa do Brasil. A casa daqui ainda não é quite home (mas está se tornando). A estrangeirice recém se abriga neste corpo em constante "entre", sempre morando nas saudades. Deve ser por isso que o meu corpo se revolta alguns dias e acorda em português. Minha casa é minha língua. Sinto saudades de casa. Da minha boca insiste em sair o português, como uma denúncia. Não sou daqui. Às vezes estou mesmo mais no Brasil do que aqui (em pensamentos, sentimentos, nas conversas com meus pais e amigos, nos atendimentos clínicos). E, sabe? Não quero perder esse português rebelde que ainda se impõe. Não quero esquecer. Algo do meu corpo ainda resiste à estrangeirização, inútilmente. Nada mais denunciante da nossa estrangeirice do que essa mistura de línguas.
"Apesar de ter duas línguas, o bilíngue fala como se sempre lhe faltasse algo, em permanente estado de necessidade".
Sylvia Molloy
Viver é viver com as faltas. Desejar é fruto das faltas. Ser estrangeira é ter a falta escancarada. As palavras me faltam. Me faltam adjetivos para descrever o que sinto, o que penso. Até explicar o que é um simples pastel vira uma saga, uma caça ao tesouro do entendimento. Ser bilíngue é paradoxal. Duas línguas, dois vocabulários, e a falta constante de palavras, o rastro de faltas que as traduções deixam.
"Afinal de contas, em que língua sou?", se pergunta Sylvia. E eu respondo sem titubear, eu sou em português. Eu só consigo me emocionar quando leio poesia em português. Eu só consigo me expressar plenamente em português. Só o português tem saudade. Titubeio, tento explicar. Não sai. As palavras carregam sentimentos tantas vezes intraduzíveis.
"Para o bilíngue, complicação é a vida mesma."
Sylvia Molloy
*trechos destacados do livro: Viver entre línguas, da Sylvia Molloy. (A capa belíssima é da minha amiga artista amada Paulinha).
Notícias do lado de cá:
Acabei de chegar do Coles (o supermercado que eu amo) com Hot cross buns. Há exatamente 8 anos atrás eu estava em Sydney, e, passeando por Manly, eu comi pela primeira vez esses pãezinhos tão típicos da Páscoa aqui. A páscoa se aproxima e eu gosto dessa repetição, desse eterno retorno que é morar aqui. Minha memória passeia por lembranças de 8 anos atrás como se fosse ontem. Por aqui já faz frio, e é assim mesmo. Num dia está 27 graus, estou andando de shorts, e no dia seguinte, do nada, sem nenhum aviso, um frio congelante, casaco, dias cinzas e chuvosos.
Essa semana tive a orientação da universidade, conheci alguns prédios incríveis do campus, trabalhei no meu projeto, preparei a minha primeira apresentação para o grupo de pesquisa, enfim, já posso dizer que tenho uma rotina aqui. Isso alivia as tensões do desconhecido, mas também abafa a surpresa constante de ter recém chegado nesse lugar tão novo (e tão familiar, paradoxalmente) para mim.
O pior evento dessa semana foi uma janta com algumas pessoas esnobes daqui (nem me pergunte como eu fui parar nesse jantar) e pela primeira vez em toda a minha experiência na Austrália eu vi pessoas sendo racistas (muito racistas) com o Brasil. Foi um evento chocante, desconcertante. Eram pessoas tão ricas e tão ignorantes, completamente descoladas de qualquer realidade que não a do privilégio delas. Dava para sair um livro desse encontro, de tantas atrocidades que eu presenciei. Enfim, sobrevivi. Um pouco capenga, muito indignada, mas ainda mais orgulhosa do meu país amado.
Aqui já é domingo e estou preparando o almoço: massa com atum (minha especialidade). A semana vai ser mais curta por causa da Páscoa. Minha flatmate colocou as decorações e espalhou ovinhos de chocolate pela casa, o que é uma fofura! Eu vou mandando notícias. Me manda notícias também!!
Perto do coração selvagem
“Talvez fosse apenas falta de vida: estava vivendo menos do que podia e imaginava que sua sede pedisse inundações.” Clarice Lispector
a sede de não viver
a fome de desejar
eu só queria viver mais
viajar mais, tentar mais, arriscar mais, errar mais, cair mais, chorar mais, sentir mais, cantar mais, dançar mais, conhecer mais pessoas, conhecer mais lugares, mais gostos, mais cheiros, mais desafios, mais arrependimentos, mais saudades
a vida é oceano
(a minha vida é entre oceanos)
e tudo o que a minha sede pede
é inundação
Que alegria te ter por aqui!
Me identifiquei demais com suas palavras. Por aqui, vivi e vivo entre muitas línguas a mais de 10 anos. Vejo minha filha começar a falar com tanta naturalidade em 3 línguas diferentes, como se trocasse de roupa pra sair. Penso muito em como a identidade do ser se molda quando nasce num ambiente multilíngue. É lindo, e intenso e, por vezes, confuso. Só sei que ver ela falando português fluente em um lugar onde ninguém mais fala, é um presente sem tamanho. Também tenho escrito sobre essa coisa de viver entre línguas. Adorei a recomendação do livro, já fiquei curiosa pra ler. Obrigada por dividir sua experiência. É legal demais encontrar outras pessoas vivendo nesse mesmo mundo de línguas misturadas 😊
Me identifiquei muito com os anos que morei na Califórnia. A língua portuguesa tb era minha rebeldia. Qdo me estressava, ou surgia algum diálogo mais exaltado, me via falando em português para extravasar o tanto de saudade que estava agarrado. Eu adorava morar lá, foi um momento maravilhoso. Mas o eventual "sentir-se estrangeiro", por vezes em tarefas simples do cotidiano, como vc disse, incomodava porque sou bem exigente com as palavras e em idioma estrangeiro, por mais tenhamos algum domínio nunca será como o da casa.
De quebra, qdo voltei para o Rio, me via dizendo 'sorry' e 'excuse-me' qdo me encostava nos outros kkkkk
Adorei a frase " Em que idioma acorda o bilíngue?" . Simplesmente, uma reflexão maravilhosa.