o lugar em que estamos nos faz ser quem somos ter lugar é ter sentido fazer sentir saber que é precioso estar aqui e não em qualquer outro lugar aqui costuro as palavras de Lauren Elkin e Ariela K. com o tecido da minha vida que clama por um lugar uma cidade um passado um futuro
A Ariela K. escreve uma das minhas newsletters preferidas: a diletante. A diletante, como diz o adjetivo, é grande admiradora das artes e da literatura (e eu sempre acredito que admirar é um ato de amar). Na sua última news, Ariela escreve sobre a morada temporária das nossas vidas. Quando a ansiedade toma conta do meu corpo e alguma situação me preocupa, eu costumo me questionar: "Daqui a 5 anos isso fará alguma diferença?". "Daqui a 10 anos isso ainda será uma preocupação?". A resposta (na maioria das vezes) é bem clara: não. Experimento um alívio imediato. Tudo ganha uma nova perspectiva.
O que Ariela conta é que ela tem um amigo que sempre a pergunta: “Isso vai importar em três mil anos?”. Essa pergunta gera um incômodo e revela um afeto. Nas palavras de Ariela:
"Três mil anos nos obrigam a encarar o nosso provincianismo histórico: a enormidade do passado e a imensidão do futuro, no meio dos quais a nossa vida é um instante."
A escala milenar revela a nossa desimportância. Somos grãos de areia no grande deserto do tempo. Tudo tende a desaparecer. Mas a escala milenar também revela o que estamos deixando para a humanidade que viverá muito depois de nós (se a terra não acabar em 40 anos). Quase nunca nos damos conta disso, mas nossa vida é o elo entre o passado que nos criou e o futuro que criamos.
Vivemos em um tempo sem perspectiva de futuro, desconectados do passado, presos em um eterno presente em que tudo deve ser imediato, feito para o prazer imediato, resolvido imediatamente. E as nossas cidades revelam isso, como um espelho de quem somos, apagando quem fomos e quem queremos ser.
Lauren Elkin escreveu sobre isso no seu maravilhoso livro "Flâneuse" (que já está entre os meus favoritos da vida). Uma cidade é como a tentativa de criar uma certa imortalidade coletiva. Isso não acontece na minha cidade, que não preserva seus prédios históricos, destrói ruas e seus paralelepípedos, prédios e casas. A cidade perde sua história, eu perco a minha história, e quem virá… bem, quem se importa? A casa em que fiz ballet grande parte da minha vida está prestes a ser demolida (e esse é só um exemplo).
O urban sketchers faz um trabalho importantíssimo de resgate histórico e preservação da memória. Mas eu queria que a cidade vivesse na concretude das ruas, e não apenas em belíssimos desenhos. E cada vez mais a minha cidade se parece com qualquer outra cidade do mundo. Poderia estar em qualquer lugar, mas estou aqui. Há beleza e força em estar aqui, e não em qualquer outro lugar. O que eu só posso ver aqui. O que eu só posso comer, escutar, cheirar aqui. O que eu só posso viver aqui faz desse lugar precioso.
Mas estamos sem lugar, sem sentido, sem história. Nada é feito para durar. E o que dura é destruído para dar lugar a uma espécie de homogeneização que destrói qualquer senso de lugar. Elkin escreve:
"A posteridade não faz sentido para uma civilização que vive num constante e interminável presente, com tanta preocupação com o futuro ou tanto senso de passado como uma criança." p.46
Por isso a escala milenar me parece importante (apesar de incômoda). Que cidade estamos deixando para quem virá? O trabalho não se encerra com a nossa vida. Somos meros ocupantes temporários de cargos que permanecerão, como bem cescreve Ariela:
"O trabalho de descobrir o mundo e revelá-lo é infinito. Somos pequenos e limitados. Mas o mundo vindouro é feito dos tecidos das nossas vidas."
Te tratarei como uma rainha - Rosa Montero
Eu adoro a Rosa Montero, mas não gostei desse livro. Mesmo assim, li até o fim, pois tenho dificuldade de abandonar as coisas, especialmente livros. Uma bobagem, eu sei. A vida é muito curta e tudo o mais. Mas foi um bom livro-sonífero para antes de dormir. Aproveito para compartilhar contigo os direitos do leitor (genial!), segundo Pennac (1993):
Direitos imprescritíveis do leitor: 1. O direito de não ler. 2. O direito de pular as páginas. 3. O direito de não terminar de ler o livro. 4. O direito de reler. 5. O direito de ler no importa o quê. 6. O direito ao “bovarismo” (doença textualmente transmissível). 7. O direito de ler não importa onde. 8. O direito de ler uma frase aqui e outra ali. 9. O direito de ler em voz alta. 10. O direito de se calar. Daniel Pennac
Queer eye Brasil (que eu amo!)
“o assustador é se entregar ao que desejamos” - Aline Valek
Que alegria te ter por aqui!
Bruna, fiquei pensando nesse seu texto. Recentemente levei o meu marido americano pela primeira vez a São Paulo, que foi onde cresci. Vários lugares das minhas memórias afetivas não existem mais. Não só o meu colégio foi demolido e virou um prédio residencial, como todo o bairro de Pinheiros está em processo de virar uma outra coisa. E é estranho que esses lugares vão só existir na memória.
Se isso fosse só uma perda individual, seria uma coisa. Mas a gente tem passado o rolo compressor na história das cidades, na história do país. Na Avenida Paulista não sobrou quase nada da era do café, um tempo importante pra explicar quem somos e pra falar da imigração no país. Faltam museus em memória da escravidão, a principal ferida do Brasil. E é interessante porque alguns dos momentos mais inspiradores que tive em São Paulo foram nos museus, tanto o Itaú Cultural quanto a Japan House - não porque eles celebrem o passado, mas porque eles dão um senso de possibilidade pro futuro. Se a gente já fez tanta coisa, o que mais não podemos fazer? De outra forma, ficamos fixados em um eterno presente. Beijos
Florianópolis também é a cidade onde moro. A quantidade de casas demolidas tem me assustado bastante. Abraço!